RIO - “O usuário precisa primeiro estar vivo, para depois pensar em parar”, declara, pragmático, Rafael West, gerente geral de Políticas Sobre Drogas do Atitude. West se refere a um dos fundamentos do projeto pernambucano, que acolhe pessoas que usam crack em situação de violência, sem exigir delas a abstenção. Sua afirmação também expressa a orientação de uma série de iniciativas que buscam novas abordagens para o tema drogas no país. Dez delas são apresentadas na publicação “Políticas de Drogas no Brasil: a mudança já começou”, que será lançada, nesta terça-feira, pelo Igarapé, instituto dedicado às agendas de segurança e desenvolvimento. Ao reunir ações desenvolvidas em São Paulo, Rio, Bahia e Pernambuco, a organização pretende mostrar que, na prática, inovações já são adotadas no país e apresentam bons resultados, ainda que o debate sobre o assunto continue polarizado.
— Há uma desconexão entre política e prática. Embora ainda existam reticências no meio político em enfrentar o tema, na prática, as pessoas buscam soluções. Quando as emergências são gritantes, não dá para esperar — opina Ilona Szabó, diretora-executiva do Igarapé. — Procuramos políticas que rompessem paradigmas e fossem alinhadas com o conceito de redução de danos. Em sentido restrito, reduzir danos é aceitar que algumas pessoas não podem parar de usar drogas, o que não torna impossível melhorar a saúde delas. Mas trazemos uma perspectiva mais ampla, com a redução de danos causados pela própria política de drogas, que hoje tem consequências negativas relacionadas à violência, à questão prisional e à marginalização da juventude, por exemplo.
Elencado entre as dez experiências, o Atitude foi criado em 2011 numa tentativa de diminuir altos índices de violência associados ao consumo abusivo de crack. O foco prioritário do programa são usuários ameaçados de morte, com problemas na Justiça, moradores de rua. A eles são oferecidos, em diferentes etapas, desde banho até aluguel social de R$ 600, passando por oficinas educativas. Cerca de 600 são atendidos por dia pelo programa.
— Na nossa avaliação, o usuário em Recife morre mais por problemas de violência do que por saúde. Notamos uma redução de cerca de 10% dos homicídios nos territórios de atuação do Atitude, com trabalho integrado com a segurança pública — diz West.
O gerente geral do Atitude aponta como importante característica do projeto a baixa exigência em relação aos usuários. Ao impor menos condições para que pessoas sejam atendidas — abandonar o consumo não é uma delas —, o projeto aumenta a adesão, explica. A lógica é aplicada também pelo Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas (Cetad), ligado à Universidade Federal da Bahia (UFBA). Fundado em 1985, o projeto iniciou seus trabalhos com troca de seringas e distribuição de preservativos para usuários de drogas injetáveis, uma maneira de tentar conter o avanço do HIV nesse grupo. Em seu projeto mais recente, o Pontos de Cidadania, usuários de álcool e substâncias ilícitas têm acesso a contêineres com chuveiros e salas para atendimento individual.
— Ao longo dos anos, observamos que o banho e a troca de roupa facilita o contato dos usuários com a sociedade em geral. Eles vivem em uma situação de vulnerabilidade tão grande, que a sujeira dificulta o acesso ao sistema de proteção social. É uma intervenção de baixíssima exigência, uma vez que nós nos aproximamos do território deles — conta o psiquiatra George Hamilton Gusmão Soares, coordenador geral do Cetad.
FINANCIAMENTO É PROBLEMA
No ano passado, o centro, que também tem serviço ambulatorial, atendeu a oito mil pessoas. Completando 30 anos, o projeto tem, entre os principais obstáculos para sua continuidade, dificuldades de financiamento, afirma Soares. O problema se repete em outros programas listados pela publicação do Igarapé. A especialista em segurança e política de drogas do instituto Ana Paula Pellegrino explica que, ao lado da estigmatização, o custeio é o principal desafio dos programas:
— Um problema é consequência do outro. Com a estigmatização do tema, se torna muito difícil conseguir financiamento, porque, muitas vezes, os financiadores não entendem o conceito de redução de danos e o que é aceitar que há pessoas que não vão deixar o uso em nenhum momento.
Embora grande parte das ações apresentadas seja de pequeno e médio porte, a publicação também traz tentativas de ações integradas entre diferentes esferas de governo. É o caso do De Braços Abertos, lançado em janeiro de 2014. O projeto é resultado da integração entre diversas secretarias municipais de São Paulo, como Saúde, Segurança Urbana, Trabalho e Empreendedorismo e Assistência e Desenvolvimento Social, e vinculado ao programa federal Crack, é Possível Vencer. O objetivo é resgatar socialmente usuários com a oferta de trabalho remunerado, alimentação e moradia. Em um ano, calcula ter reduzido em 80% o fluxo de pessoas consumindo drogas na região da Luz, a popular Cracolândia. Segundo a Polícia Militar, entre 2013 e 2014, roubos de veículo na área caíram 80%, e furto a pessoas, 33%. Já são 453 os cadastrados.
— O indivíduo que está nessa situação precisa de atenção integral. No programa, os beneficiários têm acompanhamento social, uma vez que às vezes estão sem documentos ou com problemas na Justiça. E também problemas de saúde, não só ligados ao vício, mas oriundos de tuberculose, sífilis ou má dentição. O papel do trabalho é fundamental, no sentido de fazer uma pactuação de troca — enumera a secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, Luciana Temer. — A região da Luz tem uma questão de segurança complicada, e uma unidade móvel do Crack, é Possível Vencer monitora a presença de traficantes.
As iniciativas listadas por “Políticas de Drogas no Brasil” não se limitam a atendimento. Entre as experiências, está o Crack, Álcool e Outras Drogas, programa criado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para agregar atividades de pesquisa que já eram desenvolvidas pela instituição, mas de forma dispersa, como explica o coordenador Francisco Inácio Bastos, um dos responsáveis pela “Pesquisa Nacional sobre o uso de crack”, referência no tema:
— O programa possibilitou integrar diferentes profissionais e propostas, e abordar a questão na sua complexidade e múltiplas interfaces. Tínhamos, por exemplo, uma vigorosa interface com o campo das doenças infecciosas, pois esta é a tradição da instituição, mas pouco ou mesmo nada em outras áreas vitais, como a questão dos acidentes de trânsito.
— Há demanda de diversos setores da sociedade de que tenhamos uma maior densidade de pesquisa, evidências, fundamentações e dados, para um debate mais sério e responsável sobre álcool e drogas, que não seja calcado em posicionamentos morais ou arraigados culturalmente — completa Francisco Netto, assessor do programa.