Brasil

STF começa nesta quinta a decidir sobre descriminalização do porte de drogas

Para ministro, tribunal também pode tornar mais objetivos os critérios para distinguir usuário de traficante
Reivindicação. Passeata em São Paulo em 2013 pede mudança na política sobre drogas, o que pode acontecer após o julgamento no Supremo Tribunal Federal, marcado para começar hoje Foto: Juliana Spinola / © Juliana Spinola/Demotix/Corbis
Reivindicação. Passeata em São Paulo em 2013 pede mudança na política sobre drogas, o que pode acontecer após o julgamento no Supremo Tribunal Federal, marcado para começar hoje Foto: Juliana Spinola / © Juliana Spinola/Demotix/Corbis

BRASÍLIA E RIO - Pode haver uma quantidade de droga que diferencie o usuário do traficante? Países como Colômbia, Holanda e México têm diversos limites tolerados por lei para o porte de maconha, por exemplo. Esta poderá ser uma das questões em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) a partir de hoje, durante o julgamento que definirá se portar drogas para consumo pessoal no Brasil continuará sendo crime. Especialistas no assunto pedem, também, critérios objetivos para separar o consumidor do vendedor de drogas. Na opinião do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, estabelecer um limite quantitativo para o porte pode dar objetividade à forma de lidar com uma pessoa flagrada com drogas, mas ele acha que esse não deve ser o único critério para distinguir traficante de usuário.

— Acho que uma eventual determinação de quantidade servirá para excluir o tráfico. Mas a quantidade, por si só, não deve ser o critério definitivo.

A Lei de Tóxicos, de 2006, já faz distinção entre consumidor e comerciante de drogas. Segundo o artigo 28, "para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente". Mas, segundo estudiosos do tema, esses critérios são vagos, dão margem a subjetividade. De acordo com Barroso, o tribunal tem poderes para definir critérios mais objetivos para, assim, orientar o juiz ou a autoridade policial na classificação de usuário e de traficante:

— Há uma questão importante debatida no mundo todo sobre a descriminalização especificamente do consumo de maconha, se isso invadiria ou não um espaço próprio da privacidade e da autonomia da pessoa. E há uma segunda questão, caso esta passe, estou falando em tese, que é a de definir critérios para distinguir o que seja consumo do que seja tráfico — diz o ministro.

JULGAMENTO NÃO DEVE TERMINAR HOJE

A expectativa é de que o julgamento não termine hoje, porque deve haver pedido de vista de um dos integrantes do Supremo. O ministro Marco Aurélio Mello afirma que o julgamento não deve determinar os fatores que definem o consumidor e o traficante.

— Não dá para nós definirmos neste julgamento quem é usuário e quem é traficante. Isso tem que ficar a critério do juiz, processo a processo. O juiz deve ouvir as testemunhas, perceber os elementos coligidos pelo Ministério Público em termos de culpa e, então, definir caso a caso quem é usuário e quem é traficante. Não podemos dizer que quem porta pequena quantidade de drogas é simplesmente usuário — comenta o ministro, acrescentando que o uso de droga deve ser encarado como um problema de saúde, em vez de penal.

No Brasil, usar drogas não é crime, mas portar, sim — mesmo que seja pouca quantidade, para consumo próprio. O tribunal vai analisar um processo em que uma pessoa flagrada com 3g de maconha contesta a constitucionalidade dessa lei. Para a defesa, impedir alguém de portar droga para o uso próprio fere a intimidade e a liberdade individual, valores que estão expressos na Constituição Federal. Se o réu ganhar a causa, a mesma decisão será aplicada em processos semelhantes.

 O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF)
Foto: Fellipe Sampaio / STF/Fellipe Sampaio
O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF) Foto: Fellipe Sampaio / STF/Fellipe Sampaio

Barroso ressaltou a importância do julgamento na definição da política de drogas. Na avaliação do ministro, países de primeiro mundo estão mais preocupados com o usuário. Ele também salientou o alto índice de encarceramento de pessoas flagradas com drogas para uso pessoal, mas que não representam perigo à sociedade.

— Não é um debate juridicamente fácil nem moralmente barato, mas precisa ser feito —concluiu Barroso.

A atual Lei de Drogas considera crime “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal”. Mas a lei não prevê a prisão de condenados pelo simples porte. As penas listadas são advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a curso educativo. Eventual condenação pelo crime também tira da pessoa a condição de réu primário.

O diferenciação entre usuários e traficantes foi tema de nota técnica elaborada por especialistas das áreas médica, jurídica e criminal em ação coordenada pelo pelo Igarapé, instituto dedicado às agendas de segurança e desenvolvimento. No documento, divulgado no início desta semana, eles sugerem quantidades de maconha (de 25g a 100g), cocaína e crack (de 10g a 15g para ambas) que distinguiriam o porte para uso de tráfico, citando estudos científicos e experiências internacionais.

“CLIMA FAVORÁVEL”, DIZ DEFENSOR

Mas a pesquisadora Ana Paula Pellegrino, do Igarapé, afirma que a proposta não é mesmo tornar a quantidade um critério exclusivo para a distinção:

— A legislação traz oito critérios para serem considerados pelo aplicador da lei, entre eles, a quantidade. A nossa sugestão é tornar a aplicação da legislação mais segura — diz Ana Paula, para quem as declarações dos ministros indicam que eles podem votar pela inconstitucionalidade do artigo 28, que prevê punições para o porte de drogas para uso próprio. — Há pessoas presas que poderiam estar do lado de fora, sendo tratadas por outras políticas de Estado. Sinto que o clima é de reconhecimento dessa situação. Os ministros dão sinais de que o Brasil está pronto para corrigir rumos.

Defensor público e signatário do documento, Rodrigo Pacheco faz coro:

— Acredito que as duas declarações renovam a percepção de que o clima é favorável à declaração de inconstitucionalidade. Mas temo que, se isso ocorrer sem a fixação de uma quantidade, haja um retrocesso — pondera, reafirmando que o estabelecimento de uma quantidade mínima serviria de referência para autoridades. — Os juízes não estariam obrigados a considerar automaticamente a quantidade, mas o parâmetro poderia ser usado em todo o Brasil. Se a quantia não for fixada, haverá decisões contraditórias e atuações policiais contraditórias.