Aumenta o consumo

O proibicionismo falhou
Le Monde Diplomatique Brasil
9 de Setembro de 2009

Em recente pesquisa realizada em processos criminais por tráfico de drogas, no Rio de Janeiro e em Brasília, foi demonstrado que o sistema penal é seletivo, e os varejistas, que vendem pequenas quantidades de drogas, constituem 60% dos condenados, tendo sido presos sozinhos e desarmados e recebido severas penas privativas de liberdade. A opção pela repressão penal sobre as drogas ilícitas se mostrou cara e ineficaz na proteção da saúde pública, pois a produção é atuante, o consumo não foi controlado, as drogas estão mais potentes e as penitenciárias cheias de pequenos traficantes de drogas. O mercado ilícito é altamente lucrativo e o tráfico movimenta bilhões de dólares em todo o mundo.


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    Edição 26 - Setembro 2009

O atual modelo proibicionista de controle de drogas falhou, não há mais como negar essa realidade, sendo necessário pensar em alternativas.

A opção pela repressão penal sobre as drogas ilícitas se mostrou cara e ineficaz na proteção da saúde pública, pois a produção é atuante, o consumo não foi controlado, as drogas estão mais potentes e as penitenciárias cheias de pequenos traficantes de drogas. O mercado ilícito é altamente lucrativo e o tráfico movimenta bilhões de dólares em todo o mundo.

Em recente pesquisa realizada em processos criminais por tráfico de drogas, no Rio de Janeiro e em Brasília, foi demonstrado que o sistema penal é seletivo, e os varejistas, que vendem pequenas quantidades de drogas, constituem 60% dos condenados, tendo sido presos sozinhos e desarmados e recebido severas penas privativas de liberdade (1). Apesar de, atualmente, os condenados por tráfico de drogas serem a segunda maior incidência no sistema penitenciário brasileiro, só perdendo para os crimes patrimoniais, tal situação não acarreta nenhuma alteração na oferta ou no consumo de substâncias ilícitas.

Porém, apesar do fracasso, ainda não há consenso sobre as alternativas. Não obstante a manutenção dos tratados internacionais de drogas, diversos países já adotam políticas diversificadas em relação às Nações Unidas, e a última reunião do Comitê de Drogas Narcóticas da ONU (CND) demonstrou essa falta de consenso.

Dentre as alternativas que vêm sendo discutidas na esfera internacional estão a despenalização e a descriminalização do uso e da posse de drogas.

A despenalização da posse de drogas para uso próprio deve ser compreendida como uma estratégia limitada de oposição ao proibicionismo clássico, pois mantém a conduta como crime previsto na lei, mas exclui a imposição de pena de prisão. Está atualmente prevista na Lei de Drogas nº 11.343/06, e caracteriza-se como um modelo proibicionista moderado (2). Apesar de manter a repressão ao tráfico, propõe sanções alternativas ao usuário.

Assim, enquanto a descriminalização significa a retirada de determinada conduta do rol dos crimes, por lei ou interpretação jurisprudencial, a despenalização exclui tão-somente a aplicação da pena privativa de liberdade, mantendo a proibição e a conduta como crime. Portanto, haverá despenalização quando a conduta, embora típica, deixar de ser apenada com pena de prisão, ou quando esta for substituída por medidas restritivas de direito.

Essa estratégia reduz o alcance da repressão penal e se baseia nas considerações críticas sobre o fracasso da prisão, sua inutilidade e na necessidade de se adotar medidas mais humanitárias com relação ao usuário. Do ponto de vista pragmático, justifica-se por razões econômicas, como a desnecessidade de encarceramento do usuário e o alto custo da prisão (tanto econômico como humanitário). Atuando de forma setorial, prevê para o usuário uma resposta penal menos irracional, e vem sendo adotada pela maioria dos países europeus (3). Na prática, significa uma moderação do proibicionismo radical, mas sem contestar abertamente os tratados internacionais contra drogas.

Estigmatização do usuário

Os países que despenalizaram o uso também seguem políticas de redução de danos, ou seja, procuram reforçar medidas de saúde pública, por meio de uma estratégia pragmática moderada, humanitária e integrada.

Porém, a crítica principal a essa estratégia está na limitação de seu alcance e na manutenção da linha repressiva. A estratégia despenalizadora ainda se apresenta como uma tímida oposição ao modelo proibicionista, que é mantido em sua estrutura, além de insistir na questionável função simbólica da norma. Tampouco impede a estigmatização do usuário e do dependente, que continuam em contato com a polícia e o sistema judicial, ainda que não haja pena de prisão.

O Brasil passou a adotar esse modelo com a edição da Lei nº 11.343/06 que, em seu artigo 28, excluiu expressamente a previsão de penas de prisão e estabeleceu somente sanções alternativas (advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programas ou cursos educativos), com duração de até cinco meses. Em caso de reincidência, o máximo da sanção será de dez meses (parágrafo 4o, art. 28). Segundo o parágrafo 1o desse mesmo artigo, equipara-se à posse o plantio destinado à preparação de pequenas quantidades de substância ilícita.

Deve ser destacado, porém, que nem sempre um modelo despenalizador, em tese, é necessariamente alternativo ou benéfico ao usuário, pois este continua sendo estigmatizado pelo sistema penal diante dos registros de sua passagem pela Justiça, mesmo que não cumpra pena privativa de liberdade.

Outra crítica que pode ser feita a esse modelo são os riscos ao usuário, que não tem a garantia prévia de saber, por exemplo, a quantidade que poderá portar para ser diferenciado de um traficante, o que dependerá da interpretação da lei, a cargo de um juiz.

Por mais esse motivo, considera-se que essa estratégia despenalizadora deveria evoluir para uma descriminalização, ou seja, para a retirada da conduta do rol dos ilícitos penais, por ser bem mais ampla e ter por base uma fundamentação garantista e constitucional ligada aos direitos humanos.

A descriminalização visa reduzir tanto os efeitos perversos da repressão penal como os efeitos secundários do tráfico e da criminalidade.

Do ponto de vista teórico, de forma coerente, a descriminalização funda-se ainda na defesa do direito à privacidade e à vida privada, e na liberdade de as pessoas disporem de seu próprio corpo, em especial na ausência de lesividade do uso privado de uma droga, posição essa defendida por vários autores (4), e que foi reconhecida pela famosa decisão da Corte Constitucional da Colômbia (5).

Danos menores

No entanto, há alguma divergência sobre quais tipos de drogas devem ser descriminalizadas. As opiniões convergem pela legalização da cannabis, considerada uma droga “leve”, justificada pela generalização de seu uso e aceitação social: reduzido risco de dependência; indicações terapêuticas; menor danosidade se comparada às drogas lícitas, como tabaco e álcool; e necessidade de separação do usuário de cannabis do mercado ilícito.

Na atualidade, a política criminal de muitos países da Europa Ocidental já se adequou a esse modelo. A descriminalização de todos os tipos de drogas é uma realidade em Portugal e na Espanha; enquanto que Bélgica, Irlanda e Luxemburgo o fizeram somente com relação à maconha, e o Reino Unido recentemente discutiu a desclassificação da cannabis. Até mesmo nos EUA, mais especificamente na Califórnia, houve um avanço e a cannabis pode ser comprada livremente com receita médica, por indicações terapêuticas.

Na análise dos exemplos europeus, nota-se que os países que adotaram a estratégia descriminalizante para o usuário foram cautelosos no sentido de descriminalizar somente o uso e a posse não problemáticos de droga (6), de pequenas quantidades para uso pessoal, ainda mantendo como crime casos de envolvimento de menores, riscos ao público e uso em locais públicos, dentre outras circunstâncias agravantes.

A descriminalização da maconha é uma hipótese a ser estudada como medida intermediária ampla, que pode ter impacto positivo na redução da repressão penal, em busca de uma intervenção de saúde pública, já que é hoje a droga ilícita mais consumida no Brasil (7). Mesmo sem questionar o sistema em si, seria uma medida setorial de relevante impacto na redução dos efeitos perversos do modelo atual. Uma eventual descriminalização da maconha e a regulamentação de sua venda facilitariam, inclusive, a adoção de programas de redução de danos.

No entanto, considera-se como mais adequado o modelo que descriminaliza todas as drogas, por uma questão de coerência e pelas possibilidades de mudança de paradigma.

Como exemplo, deve ser citado o modelo português que descriminalizou todas as drogas, submetendo seus usuários a um controle administrativo, constituindo um exemplo de processo de descriminalização feito de maneira racional e cautelosa, de acordo com a Lei portuguesa no 30/2000 (8), considerada um dos modelos mais avançados do mundo.

Um detalhe extremamente importante na lei portuguesa é a determinação legal de quantidades máximas permitidas para a posse de cada uma das substâncias, levando em consideração sua natureza e potencialidade lesiva à saúde individual, ou seja, por meio da previsão de critérios objetivos de determinação de quantidade como sendo o consumo médio individual para um período de 10 dias, conforme o art. 2o da lei já citada e artigo 94 da Portaria no 94/96.

Os casos de uso e porte de drogas naquele país são atualmente analisados pelas Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência (9), órgão especializado, de caráter interdisciplinar (10). Os usuários de drogas podem ser multados (entre 25 euros e um total equivalente ao salário mínimo nacional), porém esse sistema só será acionado em último recurso, em regra, na ausência de sinais de dependência, sendo desnecessária outra ação (ajuda psicológica, por exemplo). Se o uso é manifestamente ocasional, a imposição da multa é suspensa e a pessoa é colocada em probation por certo período. No caso de delitos subsequentes, uma multa ou outra medida administrativa coercitiva podem ser impostas aos usuários. Entretanto, se a pessoa é dependente, a lei exige que o caso seja encaminhado aos serviços de saúde ou ao serviço social.

Em quase nove anos de sua entrada em vigor em Portugal, os resultados estão sendo considerados satisfatórios. Porém, por ser setorial, há quem considere essa proposta portuguesa como contraditória, pois ao mesmo tempo que prevê tolerância para os usuários, reprime o comércio e o mantém na ilegalidade.

Sob esse aspecto, a descriminalização do uso não tem condições de resolver todos os problemas relacionados com as drogas. Tal proposta não é imune a críticas, por sua parcialidade ao deixar de lado o problema do tráfico, que tem que ser repensado, além de ser contraditória, ao criar um sistema liberal para o usuário e punitivo para o tráfico, que passará a fornecer uma mercadoria cujo consumo é autorizado, mas não a venda. Dessa forma, manter-se-ia o mercado ilícito da droga e a atuação questionável do sistema penal em um campo no qual não tem tido nenhuma eficácia.

Apesar desta não ser a solução para todos os males do proibicionismo, a retirada do uso de drogas do rol dos crimes, além de adequar a norma penal à Constituição, tem condições de resolver algumas questões, como a estigmatização do usuário, e o envolvimento danoso deste com o sistema penal, além da redução da corrupção e da criminalidade. Com a normalização desse comportamento, as autoridades terão mais tempo para dedicar à investigação de crimes mais graves.

Acesso ao tratamento

Como recomendação sugere-se que tal estratégia seja necessariamente acompanhada de políticas de redução de danos, de campanhas de esclarecimento e prevenção, além do acesso a tratamento voluntário nos serviços públicos de saúde. Além disso, devem ser determinadas objetivamente, por lei ou regulamento, as quantidades cuja posse e plantio sejam permitidos, para evitar a subjetividade policial e judicial (11).

A descriminalização do uso de drogas, por mais que seja uma solução parcial, deve ser implementada por ser uma medida humanitária e respeitadora das liberdades individuais, baseada na interpretação das convenções sobre drogas, de forma coerente com os tratados internacionais de direitos humanos (12). A partir de sua concretização será possível ampliar as análises, pesquisas e estudos sobre o tema do uso e do comércio de drogas, como um primeiro passo em direção a outras alternativas ao atual e fracassado modelo de controle de drogas.

Luciana Boiteux

Professora adjunta de Direito Penal e coordenadora do Grupo de Pesquisas de Política de Drogas e Direitos Humanos da FND/UFRJ.


1. Luciana Boiteux, Ela Volkmer de Castilho Wiecko (Coord.). Tráfico e Constituição. Série Pensando o Direito no 1/2009. Brasília: Ministério da Justiça, 121 p.

2. Para maior aprofundamento do tema dos modelos de controle de drogas: Luciana Boiteux de Figueiredo Rodrigues. O controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Tese de doutorado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2006.

3. Dos países europeus ocidentais, Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Holanda (toleram também o pequeno plantio e comércio de cannabis), Irlanda, Reino Unido e Suíça despenalizaram o uso e a posse de drogas, enquanto que Itália, Espanha e Portugal foram mais além e descriminalizaram as condutas.

4. Cf. Alessandro Baratta. Introducción a uma sociologia de la droga. Marino Barbero Santos. El fenômeno de la droga em España: aspectos penales. Doctrina Penal. no 10. v. 37-40, 1987. p. 1-21; Maria Lucia Karam. Aquisição, guarda e posse de drogas para uso pessoal: ausência de atipicidade penal. In: James Tubenchlak (Coord.). Livro de Estudos Jurídicos. v. 1. Rio de Janeiro: IEJ, 1991. p. 129.

5. Cf. Alejandro David Aponte. Despenalización del consumo mínimo de drogas en Colômbia: uma apuesta por la libertad. Revista Brasileira de Ciências Criminais, no10, p. 5-26.

6. O conceito de “uso não problemático” baseia-se na ausência de danos, a terceiros, do uso privado de drogas,por maiores de idade, sem causar distúrbios à ordem pública.

7. Segundo dados de 2001, o Brasil tinha 6,9% de uso em vida de maconha, ficando atrás apenas das drogas lícitas: álcool, com 68,7%; e tabaco, com 41,1%. Fonte: E. A. Carlini et al.. I Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 107 maiores cidades do país: 2001. São Paulo: Cebrid – Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas: Unifesp – Universidade Federal de São Paulo, 2002.

8. O novo regime aplicável ao consumo de estupefacientes previsto na Lei portuguesa de 30/11/2000 entrou em vigor em 01/07/2001 e descriminalizou o uso e a posse de pequena quantidade de droga para uso pessoal, que não mais constituem infração penal, mas sim contraordenação, prevista no art. 2o, no 1 da referida lei.

9. Segundo o artigo 11o, nos 2 e 3, e art. 13o, nos 1 e 2, alínea “b” da Lei nº 30/2000. Cf. Manuel Monteiro Guedes Valente. Consumo de drogas: reflexões sobre o novo quadro legal. 2a ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 187.

10. As Comissões para a Dissuasão da Dependência são compostas por três membros (sendo um advogado e os outros dois médicos, assistentes sociais ou psicólogos, apoiados por um grupo de técnicos). Sobre o tema, cf. Manuel Monteiro Guedes Valente, op. cit., p. 153.

11. Na Holanda, por exemplo, não há persecução penal pela posse de até 5g de cannabis e 0,2g de outras drogas, enquanto que para 5 a 30g de maconha a punição é apenas multa; na Áustria a “pequena quantidade” é limitada a 2g. Portugal, quando adota como critério a quantidade individual para 10 dias, a dose diária admitida é de 2,5g de maconha, 0,5g de haxixe e 0,5g de THC. Cf.Illicit drug use in the EU: legislative approach. Lisboa: EMCDDA, 2005, p. 26.

12. Com relação à responsabilidade internacional pela violação dos tratados, não se tem notícia de qualquer punição imposta pelas Nações Unidas aos países que descriminalizaram o uso de drogas, por se tratar de matéria delicada, que envolve questões de soberania e relações internacionais. De qualquer sorte, a justificativa formal apresentada pelos europeus para a despenalização do usuário se baseia nos termos do Protocolo de Emendas à Convenção Única de Entorpecentes, firmado em 25/03/1972, que em seu artigo 14 altera o artigo 36 da Convenção, com o seguinte texto: “Não obstante o que estabelece a alínea precedente, quando tais delitos houverem sido cometidos, as partes poderão, como uma alternativa à condenação ou punição ou como um acréscimo à condenação ou punição, determinar que os infratores sejam submetidos a medidas de tratamento, de educação e acompanhamento médico posterior ao tratamento e de reintegração social em conformidade com o parágrafo 1 do artigo 38”. Trata-se de uma interpretação ampla que inclui ainda a menção ao artigo 20(1) da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971 que afirma que “as partes tomarão todas as medidas viáveis para impedir o abuso de substâncias psicotrópicas e para a pronta identificação, tratamento, pós-tratamento, educação, reabilitação e reintegração social das pessoas envolvidas, e deverão coordenar seus esforços para tais fins”.