Sistema sobrecarregado
Prisões e Leis de Drogas na América Latina
Dezembro 2010
Privar alguém de sua liberdade é uma das formas mais formidáveis de poder de um Estado. A forma como o Estado exercita esse poder, acertando a balança entre o dever de garantir a segurança pública e a obrigação de respeitar os direitos humanos fundamentais, é da mais alta importância. A operação do sistema de justiça tem repercussões para a sociedade como um todo.
A chamada “guerra às drogas”, batalhada nas últimas quatro décadas, tem tido um impacto enorme no funcionamento dos sistemas carcerários e de justiça na América Latina. Para melhor identificar esses impactos mais especificamente, o Transnacional Institute (TNI) e o Washington Office on Latin America (WOLA) reuniram um grupo de especialistas de oito países da America Latina para examinar os custos humanos das atuais leis da guerra às drogas, identificando quem está atrás das grades e quais são as repercussões do encarceramento para eles, suas famílias e suas comunidades. Esse relatório cobre a situação da Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, México, Peru e Uruguai, sumarizando os resultados dos apontamentos feitos pelos grupos de pesquisa entre a legislação sobre drogas e a situação carcerária em seus respectivos países.
Em todos esses países, a ênfase colocada pelos agentes da lei em punições criminais aumentou significantemente o número de pessoas encarceradas por crime de drogas. A repressão, através de leis severas relativas às drogas, não apenas tem sido ineficaz para barrar a produção, o tráfico e o consumo de substancias ilícitas, mas também tem gerado conseqüências negativas enormes, incluindo um abarrotamento de casos na justiça, superlotação nas prisões e o sofrimento de dezenas de milhões de pessoas atrás das grades por tráfico de pequeno porte ou apenas posse. O peso das leis sobre drogas tem sido sentido mais fortemente pelos setores mais vulneráveis da sociedade.
Cada estudo de um país contem uma visão geral do desenvolvimento histórica da legislação e das leis atuais sobre drogas, bem como uma descrição das estruturas institucionais responsáveis pela repressão às drogas e pelo sistema carcerários. Cada estudo também analisa os dados disponíveis sobre a situação carcerária – incluindo os níveis de superlotação – e a característica dos próprios presos. Inclui-se o status socioeconômico, a porcentagem de presos encarcerados por pequenas acusações e o numero de traficantes de grande porte, e a porcentagem de encarcerados por apenas posse ou uso.
CONCLUSÕES
É claro que há gradações e variantes entre os oito países estudados, dados os seus papéis particulares no mercado de drogas pelas distintas dinâmicas internas dos governos e a variada conexão e vulnerabilidades a pressões políticas externas. Ainda assim, muitos elementos são em comum, o que nos permite identificar doze conclusões.
Primeiramente, os países da América Latina nem sempre tiveram uma legislação tão severa sobre as drogas; ao invés disso, elas têm sido adotadas apenas nas décadas recentes. Embora em países como Argentina e Brasil essas leis tenham sido adotadas forçosamente em contextos de regimes autoritários, a região em geral teve a mudança em direção às leis punitivas sobre drogas em resposta a pressões externas, provindo especificamente das três grandes convenções sobre drogas adotadas sob a égide das Nações Unidas, que promoveu o recrudescimento das penas. Tais tratados requeriam que as nações modificassem suas leis nacionais no sentido da criminalização de todos as condutas – com exceção do uso –relativos ao mercado de substancias ilícitas. Em alguns casos, a legislação foi mais dura do que o requerido pelos tratados. Os países Andinos em particular cederam às pressões da “guerra às drogas” combatida pelo governo dos EUA, que negociou assistências econômicas e benefícios comerciais em troca pela instauração de suas estratégias nesses países.
Em segundo lugar, leis extremamente punitivas para crimes de drogas foram introduzidas até mesmo em países e em momentos onde o mercado de drogas era de dimensões limitadas. Na maioria dos estudos sobre os países, as penalidades para crimes de drogas requeridas por estatuto eram desproporcionais, consideradas à luz das outras ofensas criminais. Apesar das leis variarem de país para país, a pena máxima por tráfico de drogas varia aproximadamente entre 12 a 15 anos. No Equador, onde a pena máxima para homicídio é dezoito anos, um pequeno traficante pode acabar com uma sentença mais longa que um homicida.
Terceiro, em geral a legislação não distingue entre diferentes graus de envolvimento com o mercado negro – tratando “aviõezinhos” e transportadores igualmente a traficantes de larga escala, também falhando em distinguir entre crimes violentos e não-violentos. Muitas pessoas recebem a pena máxima, e muitas outras, mesmo não tendo cometido crimes sérios ou violentos, acabam indo parar nas cadeias de segurança máxima. Não há também distinções feitas a respeito dos tipos particulares de substâncias ou a respeito do risco à saúde que elas oferecem quando a questão é perseguir, prender e processar uma pessoa, de tal maneira que uma pessoa vendendo maconha pode acabar com a mesma sentença de alguém que vendia cocaína.
Quarto, a severidade das leis sobre drogas tem contribuído significantemente para o aumento das taxas de encarceramento e para a superpopulação das prisões dos países estudados. Dos sete países nos quais foi possível se obter dados de 15 anos, entre 1992 e 2007, as taxas de encarceramento cresceram em média mais do que cem por cento. Com alguma diferença entre os países, prisão por crime de drogas aparecia como tendência crescente em todos os casos. A situação do Serviço Penitencial Federal da Argentina é um caso estarrecedor: em 1985 apenas um por cento da população carcerária estava cumprindo pena por crimes de drogas, enquanto que no ano 2000 esses prisioneiros somavam vinte e sete por cento do total.
Quinto, existe um abuso de detenções anteriores a julgamento para aqueles suspeitos de crimes de drogas; essas detenções freqüentemente se prolongam por anos sem resolução do status do prisioneiro. Em cinco dos oito países estudados – Bolívia, Brasil, Equador, México e Peru, detenções antes do julgamento são o padrão, independentemente de se o crime é grave ou não. Os crimes de drogas são colocados lado a lado com assassinato, estupro e seqüestro, como crimes sérios, independentemente do envolvimento da pessoa. No Peru, a detenção preventiva da polícia é de 24 horas para a maioria dos crimes, mas no caso de crime de drogas o período é de 15 dias. Em muitos países, os indivíduos podem ficar presos indefinidamente durante o período de investigação, até que as acusações formais sejam apresentadas. No México, há um período de até 80 dias nos quais o acusado pode ficar detido sem nenhuma acusação formal. E nos cinco países mencionados a detenção é obrigatória durante o julgamento até que seja dado o veredito.
Sexto, pessoas acusadas ou julgadas por crimes de drogas tem freqüentemente negado o acesso a penas alternativas que estão disponíveis para acusados de outros tipos de crimes. No Brasil, por exemplo, a lei sobre drogas de 2006 proíbe a troca do encarceramento por sentenças alternativas, apesar da lei brasileira permitir alternativas em casos de sentenças de até 4 anos para todos os crimes cometidos sem violência ou ameaça grave, o que seria o caso de muitos comportamentos criminosos relativos a drogas. No Peru, alguns benefícios que são concedidos a alguns prisioneiros – como a liberdade condicional – são negados aos presos por crimes de drogas. Até no Uruguai, o país com a legislação menos punitiva do grupo estudado, o uso escasso de medidas alternativas garantem que muitos traficantes pequenos permaneçam atrás das grades.
Sétimo, em nenhum dos países estudados os sistemas penitenciários garantiam o padrão mínimo internacional para o tratamento com os presos. As prisões estão longe de atingir as necessidades básicas e os orçamentos não foram expandidos para se atualizar com o crescimento da população carcerária. Essa situação é particularmente séria na Bolívia, Equador e Peru, onde a falta de recursos levou a problemas de saúde e de nutrição. O gasto com comida por prisioneiro nesses três países é equivalente à apenas U$0,80, U$1,60, e U$2,00, respectivamente.
Oitavo, uma alta porcentagem de pessoas encarceradas está na prisão apenas por simples posse de drogas, consumidores detidos com quantidades relativamente pequenas de drogas, incluindo maconha – até mesmo em países em que tal posse não é ilegal. Na maioria dos países estudados, as distinções entre o usuário e o traficante mal é desenvolvida nas leis e é pobremente interpretada pela polícia e pela corte. Por toda a região usuários de maconha em particular são estigmatizados e assediados pela polícia, e muitas pessoas estão na prisão por cultivarem ou simplesmente portarem maconha.
Nono, a maior parte dos detentos por crimes de drogas estão lá por crimes pequenos, mas ainda assim cumprem penas longas e desproporcionais. Nos oito países em questão, é incomum encontrar grandes traficantes atrás das grades. Os dados sobre o encarceramento de grandes traficantes são escassos, e segundo as informações que conseguimos obter, há muitas discrepâncias.
A esse respeito, os casos mais preocupantes são a Colômbia e o México, dois países que declararam guerra total ao tráfico de drogas. De acordo com os cálculos do estudo sobre a Colômbia, aproximadamente dois por cento de todos os presos por crimes de drogas são traficantes de médio e grande porte. Em outras palavras, 98 por cento não teriam tido – ou era improvável que isso pudesse ser provado – um grande papel nas redes do tráfico de drogas. No México, de acordo com o centro de pesquisa CIDE, no Distrito Federal e nos estados mexicanos, 75 por cento dos presos por crimes de drogas foram detidos por posse de pequena quantidade. Além disso, uma conseqüência negativa do encarceramento de pequenos traficantes é que as cadeias são de fato uma escola do crime; muitos traficantes pequenos saem das prisões para o mundo tendo se filiado a alguma organização criminosa.
Décimo, essa pesquisa confirma a percepção de que o peso da lei recai numa parte específica da população: pessoas com pouca educação, recursos escassos, desempregadas ou empregadas informalmente. Como descrito no caso da prisão de San Pedro na Bolívia, as histórias dos presos são caracterizadas por pobreza e crises na família ou na saúde as quais eles estavam passando quando se deu a oportunidade de obter uma renda extraordinária que poderia os ajudar a aliviar esses problemas fundamentais, em troca de se aceitar o risco de perder a liberdade e comprometer sua própria integridade física.
Décimo primeiro, a esse mesmo respeito, o estudo também revelou três fenômenos novos e interligados: aumento no número de mulheres, “aviõezinhos” e estrangeiros presos por crimes de drogas. Embora ainda em número muito menor que seus colegas homens, o número de mulheres presas por crimes de drogas aumentou consideravelmente em alguns casos. Em 2009, 80 por cento de todas as mulheres presas em El Inca, a maior prisão feminina do Equador, foram encarceradas por crimes de drogas. Na Argentina, a porcentagem de mulheres encarceradas por crimes de drogas varia entre 65 e 80 por cento, dependendo da penitenciária. O encarceramento de mulheres que estão criando suas famílias tem uma conseqüência devastadora para toda ela, já que as crianças não têm proteção econômica. O fenômeno dos transportadores de drogas, ou “aviõezinhos”, pessoas que transportam pequenas quantidades de drogas em seu corpo ou em sua bagagem, aumentou. Existem transportadores atuando em todos os países e o fenômeno é uma parte especial da dinâmica do tráfico de drogas em grandes cidades com vôos para a Europa. As drogas também se tornaram a maior causa de encarceramento de estrangeiros, que em função de seu status frequentemente encontram dificuldades com a língua ou com o acesso ao aconselhamento legal, além de não terem apoio familiar.
Décimo segundo, os pesquisadores encontraram consideráveis dificuldades com a qualidade e a quantidade de informação provida pelas fontes governamentais, dada a natureza precária e irregular dos dados oficiais na maioria dos casos. Equador, que conduziu um censo nas prisões em 2008, e o Uruguai são as exceções.
Muito falta a ser aprendido a respeito de quanto as leis sobre drogas aumentaram as taxas de encarceramento e superlotação nas prisões da região, em parte porque são poucos os dados oficiais sobre o assunto e as informações que de fato existem são freqüentemente incompletas. Ainda assim, esse estudo é um primeiro esforço sistemático de se jogar luz sobre as repercussões na America Latina dessas “conseqüências não intencionais” das políticas e leis sobre drogas no mundo.
RECOMENDAÇÕES
A implementação de leis duras sobre drogas tem abastecido o aumento das taxas de encarceramento e contribuiu para a superlotação das prisões. Certas reformas nas leis sobre drogas e a maneira como seriam implementadas poderiam aliviar a superlotação carcerária ao mesmo tempo que protegeria a segurança pública respeitando os direitos civis e humanos.
- Incorporar a legislação sobre drogas dentro da legislação e dos códigos do país – ao invés de tratá-la separadamente de outros crimes – e assegurar o total respeito aos direitos humanos.
- Estabelecer e expandir penas alternativas ao encarceramento para aqueles enquadrados em crimes pequenos relacionados com drogas, incluindo a remoção das sanções criminais por posse para uso pessoal.
- Assegurar a proporcionalidade das penas, distinguindo entre:
- Abolir penas mínimas obrigatórias.
- Evitar encarceramentos preventivos para casos de pequenos traficantes não violentos após detenção e durante a fase investigativa para determinar se haverá ou não acusações formais.
- Promover reformas nos setores da justiça para eliminar a corrupção e aumentar a eficiência da justiça local, também aumentar os fundos governamentais para melhorar a infraestrutura e as condições penitenciárias.
- Estabelecer igual acesso aos procedimentos de benefícios e oportunidades de penas alternativas a suspeitos de crimes de drogas – como tratamento, oportunidades educacionais ou serviços comunitários – que são oferecidos àqueles envolvidos em outros tipos de crimes.
- Reorientar a repressão policial para mirar a rede criminal dos grandes traficantes, ao invés de mirar aqueles traficantes de baixo-escalão, como consumidores, pequenos agricultores, pequenos traficantes e “aviõezinhos”.
- Melhorar e expandir o sistema de dados da justiça criminal e assegurar o acesso recorrente a informações da justiça criminal para a criação de políticas públicas e para a população em geral. Censos prisionais compreensivos, como o Equador efetuou recentemente, deveriam ser feitos periodicamente em cada país, e a sistematização de dados como feito pela Junta Nacional de Drogas do Uruguai deveriam ser replicadas por toda a região.
- Estimular um debate aberto sobre as vantagens e desvantagens de um mercado de maconha legalizado e regulamentado.
- Permitir que produtos de folhas naturais de coca sejam vendidos no mercado.
- Considerar a aplicação de anistias especiais, como o indulto, para pessoas que já cumprem penas desproporcionalmente severas por crimes de drogas.
- Tráfico de drogas e outros tipos de crime;
- Crimes leves, médios e graves relativos a drogas;
- Nível de envolvimento do acusado na rede do tráfico de drogas;
- Crimes violentos e não violentos; e
- Tipos de drogas.
Esse estudo não deixa dúvidas quanto a quem são as vítimas principais da chamada “guerra às drogas”. O objetivo das informações, conclusões e recomendações providas nesse relatório é encorajar um debate urgente no sentido de se alcançar um balanço maior e uma maneira humana de reduzir os danos associados à produção ilícita de substancias controladas, sua distribuição e consumo. Nós esperamos que Sistema Sobrecarregado ajude a soar o alarme para as reformas.