Tráfico de drogas e Constituição
Um estudo jurídico-social do tipo do art. 33 da Lei de Drogas diante dos princípios constitucionais-penais
Universidade Federal do Rio de Janeiro / Universidade de Brasília
Março de 2009
Esta pesquisa realizada em processos criminais por tráfico de drogas, no Rio de Janeiro e em Brasília, demonstra que o sistema penal é seletivo, e os varejistas, que vendem pequenas quantidades de drogas, constituem 60% dos condenados, tendo sido presos sozinhos e desarmados e recebido severas penas privativas de liberdade. Apesar de, atualmente, os condenados por tráfico de drogas serem a segunda maior incidência no sistema penitenciário brasileiro, só perdendo para os crimes patrimoniais, tal situação não acarreta nenhuma alteração na oferta ou no consumo de substâncias ilícitas.
Baixar arquivo (PDF)
Conclusão
A seguir são retomadas as perguntas e respondidas com base nos resultados da pesquisa bibliográfica e empírica.
1.Qual é o atual modelo de política de drogas seguido pelo Brasil e quais as possibilidades de sua alteração diante do quadro legal dos tratados internacionais de controle de drogas?
O Brasil adota um proibicionismo moderado,(1) tendo ratificado e implementado todos os tratados internacionais de controle de drogas em seu direito interno. O país mantém dois sistemas de controle diferenciados, que se complementam: o controle penal com relação ao tráfico se apresenta na forma de proibicionismo clássico, com altas penas, além de ser delito inafiançável e insuscetível de sursis, graça e anistia, sendo vedada a liberdade provisória e a conversão em penas restritivas de direitos, por ter sido equiparado a hediondo pela CF/88. Por outro lado, o controle penal sobre o uso de drogas mais se aproxima de um proibicionismo moderado, pois apesar de ainda estar criminalizado, a nova lei prevê apenas medidas alternativas não privativas de liberdade ao usuário. Tal modelo coexiste com as políticas oficiais de redução de danos, ainda que tal estratégia não aplicada de forma ampla, em todas as suas modalidades.
Após a última reunião da Comissão de Drogas Narcóticas da ONU, quando se destacou a ausência de consenso entre os países, e pelas diferenças de rumo nas políticas dos Estados-membros, entende-se que o Brasil pode e deve repensar sua própria política, mesmo fora dos limites dos tratados, por meio de uma interpretação compatível com os direitos humanos.
2. Quais são as possibilidades de adoção de um novo paradigma de controle de drogas pela comunidade internacional e qual o papel do Brasil?
Como visto, na última reunião da CND em 2009, apesar das expectativas, foi mantido o sistema atual, o que atesta a dificuldade desse tipo de alteração da política internacional, a não ser que haja vontade política dos países hegemônicos. Contudo, considera-se que a expressão pública da discordância dos 25 países que assinaram a declaração interpretativa e as próprias exposições das políticas internas dos Estadosmembros, nem todas harmônicas com relação às linhas mestras da política de drogas mundial, provou que o Consenso de Viena chegou ao fim.
Observa-se o absoluto descrédito do sistema de controle internacional de drogas com base nas três convenções internacionais, diante da sua incapacidade de alcançar os fins a que se propunha, bem como de sua ineficiência e da violação de direitos humanos, o que pode ser avaliado pela manutenção do alto consumo de drogas ilícitas, especialmente nos EUA, e dos altos custos sociais da política de drogas nos países periféricos, como no Brasil, onde a violência é outro efeito colateral da “guerra às drogas”. O momento atual, portanto, permite a abertura de caminhos outros para que os países se voltem para si e busquem soluções alternativas, adequdas à sua realidade social.
Pode-se, portanto, vislumbrar para o futuro uma maior abertura em alguns países da América Latina em direção a uma política de drogas mais humana e menos repressiva, acompanhada da ampliação das redes de redução de danos, com mais investimentos nessa seara. Porém se consideram ainda distantes as possibilidades de mudanças nas políticas oficiais da ONU, embora o UNODC pareça cada vez mais aberto, enquanto órgão executivo, para aceitar alguma flexibilização em relação ao usuário.
O papel do Brasil na referida reunião foi atuante e expressivo na afirmação de sua política oficial de redução de danos, embora não tenha subscrito a declaração interpretativa por razões "geopolíticas” definidas pelo Itaramaty. Nesse sentido, o Brasil poderá influenciar, no futuro, a alteração da política latino-americana de drogas, por ter a mais avançada proposta da região, ainda que esta precise ser aperfeiçoada e ampliada.
3.Tais tratados são constitucionais e respeitam os direitos humanos igualmente previstos em convenções internacionais?
Os tratados internacionais de direitos humanos norteiam toda a ordem jurídica internacional e interna, não sendo aceitável, do ponto de vista constitucional, que medidas penais previstas nos tratados internacionais de controle de drogas possam se sobrepor aos direitos e garantias individuais. Há aspectos dos tratados internacionais de drogas que devem ser revistos e/ou interpretados de forma restritiva, especialmente a criminalização do usuário.
Destaque-se que a Convenção contra o Tráfico de Drogas de 1988, em seu artigo 3º, n. 2,(2) menciona expressamente os limites constitucionais do direito interno em relação à criminalização do uso de drogas, ou seja, o texto convencional reconhece expressamente a prevalência da Constituição dos Estados-parte em relação à Convenção.
4. O art. 33 da Lei n. 11.343/06, atualmente em vigor, está adequado aos princípios constitucionais, especificamente ao princípio da proporcionalidade e taxatividade?
A Constituição Brasileira positiva direitos e garantias individuais em seu art. 5º, especificamente os princípios da legalidade, culpabilidade e humanidade, dentre outros, como basilares ao Estado Democrático de Direito. Conclui-se ainda, que, no direito brasileiro, a partir de 1988, passa-se a admitir o controle da proporcionalidade das leis por força do artigo 5º, LIV, ampliando-se o espectro da proteção aos direitos fundamentais e o campo de atuação do legislador. O mencionado princípio, no entanto, deve ser utilizado de forma a respeitar os limites entre as competências legislativas e a discricionariedade judicial.
O tipo penal do tráfico qualifica-se como tipo aberto, estabelece penas desproporcionais e não diferencia as diversas categorias de comerciantes de drogas observadas na realidade social. Além disso, a lei não é clara quanto à distinção entre a tipificação do uso e do tráfico, e o resultado disso é que o Poder Judiciário, além de aplicar uma lei punitiva e desproporcional, concede amplos poderes ao policial que primeiro tem contato com a situação. A atuação da polícia, nesse sistema, é ainda comprometida pela corrupção, que filtra os casos que chegam ao conhecimento do Judiciário. Este ciclo vicioso muito tem contribuído para a superlotação das prisões com pequenos traficantes pobres, e para a absoluta impunidade dos grandes.
A indeterminação da lei, e a alta pena mínima prevista, fazem com que os juízes e os demais operadores jurídicos fiquem reféns das provas apresentadas pela polícia, sendo a pena de prisão e a prisão provisória aplicadas de forma automática, uma vez que a lei veda a liberdade provisória e as penas alternativas, o que reforça a exclusão social e a violação aos direiros humanos, especialmente dos pequenos traficantes.
Outra relevante questão observada, em termos de proporcionalidade, é a absoluta irrelevância da pena em relação à substância ilícita e à quantidade de droga apreendida. Além de não haver coerência ou proporcionalidade entre a pena aplicada e a atuação do agente na estrutura deste comércio ilícito, a quantidade e o tipo de droga quase nunca são levados em consideração. Na maioria dos casos, quando isso ocorre, serve apenas para aumentar a pena aplicada, de forma desproporcional.
Com isso se conclui estar o campo jurídico alienado da realidade do fenômeno do comércio de drogas ilícitas. Por serem as penas desproporcionais, as penitenciárias estão cheias, ao mesmo tempo em que o comércio, a produção e a demanda por drogas aumentam seus lucros, servindo a política de drogas apenas como um meio puramente simbólico de proteção à saúde pública, mantendo, na prática, a tradição brasileira de repressão e controle social punitivo dos mais pobres e excluídos.
5. A atual redação do art. 33 da Lei n. 11.343/06 é adequada à realidade social do fenômeno que pretende regular e estabelece uma efetiva diferenciação entre os diferentes graus de participação no tráfico de drogas?
Com base nas conclusões dos cientistas sociais sobre o fenômeno do tráfico, ao se aproximar a reflexão jurídica da realidade social que as normas penais pretendem regular, conclui-se que o art. 33 não é adequado.
No presente estudo, percebeu-se a complexidade do fenômeno do comércio de drogas ilícitas, e suas particularidades de uma estrutura hierarquizada que segue modelos organizacionais locais distintos, e envolve diferentes graus de participação e importância. O estudo aponta para diferentes papéis nas “redes” do tráfico, desde as atuações mais insignificantes até as ações absolutamente engajadas e com domínio do fato final, porém o tipo penal não acompanha essas diferenças.
Ao contrário do modelo legal de controle penal, que se mostra estático e uniforme, o comércio de drogas é adaptado à economia e à diversidade locais. No entanto, no campo jurídico, a estratégia tem sido a seguinte: os tipos penais são genéricos e não diferenciam a posição ocupada pelo agente na rede do tráfico, sendo a escala penal altíssima; ausência de proporcionalidade das penas, e banalização da pena de prisão.
6. Quais os critérios legais previstos para essa distinção e quais as conseqüências penais, pela lei atual, para cada uma das categorias de usuário, traficante dependente, pequeno, médio e grande traficante? O § 4º do art. 33 da Lei de Drogas é suficiente para essa distinção?
Não há critérios legais previstos para essa distinção pois, como dito acima, a normativa jurídica ignora o real fenômeno do tráfico de drogas. O caput do art. 33 é amplo e aberto a interpretações, em vez de ser específico e limitador da intervenção penal. Não há critérios objetivos de diferenciação, a não ser a previsão do § 4º, que ainda assim apresenta defeitos em sua redação, pois depende da boa vontade dos juízes para ser aplicado.
Na pesquisa das sentenças se observou que a Justiça Federal do RJ aplica tal redução com mais freqüência, mas a Justiça Estadual ainda tem muitas resistências, o que faz com que haja muitos réus que, mesmo primários, recebem penas mais altas, pelo fato de a defesa não ter conseguido fazer prova negativa de seu envolvimento com o crime. O referido parágrafo deveria ter sido redigido de forma respeitosa ao princípio da presunção da inocência, de forma que somente poderia ser negada a redução quando a acusação provasse o habitual envolvimento do réu primário com outros crimes.
De acordo com a pesquisa e análise das sentenças judiciais coletadas no Rio de Janeiro e em Brasília, somente os “descartáveis” pequenos e microtraficantes, que representam os elos mais fracos da estrutura do comércio de drogas ilícitas sofrem a intensidade da repressão, e ainda recebem penas desproporcionais.
7. Quais os exemplos de outros países que adotam um modelo intermediário de controle que podem servir de paradigma para a modificação do sistema brasileiro?
Como proposta de investigação futura, sugere-se sejam estudados em maiores detalhes os modelos de Portugal, que descriminalizou o consumo de drogas e estabeleceu mecanismos legais de diferenciação entre usuário e traficante para fins de aplicação de medidas administrativas àquele, e o modelo holandês, pela separação entre drogas leves e pesadas, além da proposta inédita de tolerância com a venda de pequenas quantidades de cannabis, com o objetivo de impedir o contato de seus usuários com o mercado ilícito, já que ambas vêm apresentando bons resultados.
Na perspectiva de descriminalização do uso e da posse de drogas é necessário que se limite a atividade repressiva, dando condições ao usuário de se prevenir, por meio do critério objetivo de quantidade. Tal determinação de quantidade, no entanto, não seria vinculante para o juiz, que poderia considerar ainda outras circunstâncias em benefício do réu, mas não em seu desfavor.
Como inspiração, indica-se os exemplos de alguns países europeus. Na Holanda, não há persecução penal pela posse de até 5 g de cannabis e 0,2 g de outras drogas, enquanto que entre 5 e 30 g de maconha a punição é apenas multa; na Áustria a pequena quantidade é limitada a 2 g. Portugal, por outro lado, adota como critério a quantidade individual de 10 dias (dose diária admitida de 2,5 g de maconha, 0,5 g de haxixe e 0,5 g de THC). Também definem a quantidade de uso: Finlândia, Bélgica, República Tcheca, Dinamarca, Alemanha, Espanha.(3)
Salo de Carvalho justifica essa medida objetiva de determinação da quantidade, para permitir a aplicação do princípio da insignificância, para presumir o uso pessoal em determinadas quantidades previamente estabelecidas, como também para diferenciar o tráfico simples do qualificado, citando como exemplo a ser seguido a legislação da Espanha.(4)
Como exemplo concreto, na Espanha, com relação ao haxixe, até 50 g é atípica a posse para consumo pessoal, entre 50 g e 1 kg considera-se posse moderada, recaindo a figura do tráfico simples, enquanto que de 1 kg a 2,5 kg, incide a pena agravada, pela importância da quantidade. Acima de 2,5 kg, o tipo será do tráfico qualificado.(1)
8. Quais as propostas de alteração do tipo penal, e/ou dos mecanismos jurídicos de substituição da pena privativa de liberdade a serem criados para dar uma resposta penal mais justa e proporcional aos condenados por este delito?
Em primeiro lugar, entende-se que a melhor estratégia para lidar com o problema é a ampliação das políticas públicas de saúde, razão pela qual se sugere o fortalecimento e a ampliação de medidas de redução de danos, mediante o reconhecimento dos direitos humanos dos usuários de drogas.
Conforme o modelo português sugere-se a descriminalização do uso e da posse não problemáticos(6) de pequenas quantidades de todas as substâncias hoje ilícitas, especialmente da cannabis, mediante a determinação legal (ou administrativa) de quantidades máximas permitidas para a posse de cada uma das substâncias proibidas, levando em consideração a natureza da substância e sua potencialidade lesiva à saúde individual, ou seja, por meio da previsão de critérios objetivos de determinação de quantidade.
Com relação à escala penal do delito de tráfico, deve-se estabelecer diferenças entre drogas leves e pesadas, como ocorre em alguns países europeus, como a Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Holanda, Portugal e Reino Unido, criando-se escalas penais diferenciadas para as drogas leves e as pesadas.
Além disso, para se garantir a proporcionalidade na definição do crime de tráfico, há que se diferenciar também a quantidade de droga apreendida, e o efetivo grau de participação do acusado no comércio considerado ilícito. Neste sentido, a Alemanha prevê o critério de quantidade insignificante para determinar a resposta penal nos delitos de tráfico de drogas.(7) Os pequenos traficantes são os varejistas que trabalham com quantidades menores, que poderiam ter sua escala penal reduzida.
Independentemente das possibilidades de exclusão ou redução de pena como hoje está previsto no art. 45 da Lei de Drogas, no caso do traficante-dependente sugerese a previsão de uma escala penal menor, admitindo-se, ainda, a substituição por penas alternativas, para evitar a marginalização deste tipo de usuário. Destaque-se que o dependente se distingue do traficante-comerciante por praticar o comércio com o único objetivo de sustentar o seu vício, razão pela qual deveria ser tratado de forma mais branda, o que é admitido por algumas legislações européias, como a austríaca.
Propõe-se ainda a melhoria da redação do tipo privilegiado de tráfico previsto no § 4º do art. 33, para delimitar de forma clara quem seria o pequeno traficante, ou seja, aquele primário, que atua sem violência, e não possui comprovada vinculação com a rede do tráfico, para o qual se admitiria expressamente as penas alternativas à prisão, na forma prevista na parte geral do Cód. Penal, para condenações até quatro anos.
Considera-se essencial também a criação de possibilidades de substituição da pena, nesses casos, por medidas que incluam o comparecimento a cursos de qualificação profissional, e a facilitação da busca por emprego, de forma a conseguir afastá-los do comércio ilícito, pois somente assim se poderia reduzir o impacto negativo do sistema penitenciário sobre a população carcerária.
Tais medidas constituem um mínimo necessário para o inicio de um processo de adequação da Lei de Drogas brasileira a princípios constitucionais, e decorrem do reconhecimento da supremacia dos tratados internacionais de direitos humanos sobre as convenções antidrogas do século passado.
Porém, estas propostas são insuficientes, senão para reduzir um pouco os danos sociais – notadamente a superlotação carcerária -, e reforçar a idéia de liberdade e tolerância, além da razoabilidade e proporcionalidade violadas pelo modelo proibicionista, que precisa ser superado, por absoluta desumanidade, ineficiência na proteção da saúde individual e coletiva e ineqüidade, além de sua absoluta irracionalidade.
1. Vide os modelos de controle de drogas, na forma proposta por Luciana Boiteux sua tese de doutorado intitulada "O controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo sobre o sistema penal e a sociedade". Faculdade de Direito da USP, 2006.
2. "Reservados os princípios constitucionais e os conceitos fundamentais de seu ordenamento jurídico, cada Parte adotará as medidas necessárias para caracterizar como delito penal, de acordo com seu direito interno, quando configurar a posse, a aquisição ou o cultivo intencionais de entorpecentes ou de substâncias psicotrópicas para consumo pessoal, contra o disposto na Convenção de 1961, na Convenção de 1961 em sua forma emendada, ou na Convenção de 1971."
3. Cf. EMCDDA. Illicit drug use in the EU : legislative approach.
4. CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil : estudo criminológico e dogmático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 214.
5. Conforme informa Salo de Carvalho, na Espanha, “a definição dos critérios e dos níveis de diferenciação (...) ocorre conforme cálculo realizado pelas agências sanitárias do consumo médio diário que necessitaria o dependente. Definida a média diária de cada droga, este valor é triplicado em razão de o consumo ser projetado para três dias”. Op. cit., p. 216.
6. O “uso não problemático” refere-se ao uso por maiores de idade, em locais privados, sem causar distúrbios à ordem pública, sem atingir interesse de terceiros e sem o envolvimento de menores, além de excluir as hipóteses de posse de drogas na prisão e em estabelecimentos educacionais, prédios públicos ou locais freqüentados por menores. É previsto em várias legislações européias, como a belga e a espanhola.
7. A legislação alemã prevê pena de até 5 anos para as chamadas “condutas básicas de tráfico”, e os casos mais sérios, nos quais as quantidades não sejam insignificantes, dentre outros fatores, que podem levar a uma pena entre um e 15 anos.