Política criminal e a Lei nº 11.343/2006
Descriminalização da conduta de porte de drogas para consumo pessoal?
9 de outubre, 2006
Análise do art. 28, da Lei Antidrogas, que substituiu a pena privativa de liberdade pelas medidas de advertência, prestação de serviços comunitários ou educativas, no caso do crime de consumo pessoal de drogas.
1. Nova Descrição Típica para a Conduta de Porte para Uso Próprio de Substância Entorpecente
Mudou o controle penal estabelecido pela Lei nº 11.343/2006, aqui denominada de Lei Antidrogas. Tal mudança não se restringiu apenas ao conteúdo semântico do tipo penal em exame, que abandonou as expressões “trazer consigo para uso próprio” e “substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”.
No entanto, de maior significado penal foi, sem, dúvida a opção por uma Política Criminal de rejeição da prisão como instrumento válido de resposta punitiva à conduta do consumidor de drogas. Assim é que, de conformidade com o disposto no § 2º, do art. 48, tratando-se de consumidor, “não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente”. Portanto, em hipótese alguma, o usuário de drogas poderá ser levado à prisão.
Ressalte-se que essa forma de enfrentamento do conflito sem prisão já é prevista no parágrafo único, do art. 69, da Lei 9.099/95.
Cremos que esta norma – na esteira de boa parte da doutrina e da jurisprudência – por ser mais favorável ao infrator, é aplicável mesmo durante o prazo de vacatio legis.
A descrição do tipo penal, embora tenha se mantido próxima da anterior (art. 16, da Lei 6.368/76), refere-se agora ao consumo pessoal de drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal. Em termos de técnica legislativa e de semântica jurídica, o texto legal ficou mais claro e taxativo, o que é positivo.
A nova infração penal está descrita no art. 28 e seus incisos, com a seguinte redação:
“Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido a uma das seguintes penas:
I - “advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.
O prazo máximo cominado é de cinco meses, podendo ser dobrado no caso de reincidência (art. 28, §§ 3º e 4º) e as penas podem ser aplicadas cumulativamente ou substituídas entre si (art. 27)
A pena de advertência - até então, desconhecida do Direito Penal brasileiro - representa uma autêntica inovação, mas não apresentará dificuldade para se conhecer o seu sentido jurídico e o modo de aplicação. O próprio dispositivo determina que o juiz deve esclarecer ao “condenado” sobre as conseqüências, nocivas à saúde, do uso de drogas.
O mesmo deve ser dito e, com maior razão, em relação à pena de prestação de serviço à comunidade, que já integra o rol das penas restritivas de direitos previsto no art. 43, do CP, de reduzido grau de aplicação, no campo da práxis judiciária. Certamente, terá um destino pouco exitoso em termos efetiva aplicação e execução.
Quanto à medida educativa de comparecimento a programa ou curso, trata-se de sanção penal nova. O texto contém um pleonasmo: se a medida é de natureza educativa, não havia necessidade de se acrescentar o adjetivo educativo ao substantivo curso, conforme consta do inciso III, do referido art. 28. De qualquer forma, deve o programa ou curso ser previamente habilitado para que a nova medida possa ser aplicada pelo juiz. Aqui, a experiência indica que, mais uma vez e sem trocadilhos, estamos diante de uma norma apenas programática.
Parece que a “repressão” ou o controle do “crime” de porte para consumo pessoal de drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal vai se restringir à aplicação da medida de advertência, ao consumidor, sobre os efeitos das drogas. É mais simples, mais rápido e mais fácil de ser efetivada.
No tocante ao procedimento penal, o portador de droga para consumo pessoal será processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei nº 9.099/1995. Assim sendo, já na audiência preliminar, poderá o representante do Ministério Público apresentar proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade, ou seja, de uma das três penas cominadas no art. 28, da nova Lei Antidrogas.
2. Consumo ou Tráfico de Pequena Quantidade: A Difícil Tarefa Diferenciadora!
A realidade tem demonstrado que, em muitos casos, é extremamente difícil identificar se a conduta típica configura a hipótese de porte para consumo pessoal ou de tráfico de pequena quantidade. Geralmente, as quadrilhas do tráfico comercializam a droga em doses ou porções reduzidas. São os “papelotes” de cocaína; os “baseados” de maconha; as “pedras” de craque; os compridos ou pílulas de “êxtase” ou de anfetaminas e utilizam para a execução desse sinistro comércio pequenos traficantes que são, também, consumidores. Estes pagam o preço de seu vício com o trabalho sujo de repassar a droga a outros, também, consumidores e compradores.
Para enfrentar essa difícil tarefa diferenciadora e identificar se, no caso concreto, a conduta estava sendo praticada por um simples consumidor ou por um traficante de drogas, a nova lei determina que “o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente” (art. 28, § 2º).
Verifica-se que a lei estabelece os elementos e as circunstâncias a serem, obrigatoriamente, analisados pelo juiz a fim de decidir se o caso é de porte para consumo pessoal ou de tráfico. O dispositivo, ao fixar os marcos intransponíveis do espaço de liberdade e de convicção pessoal do juiz, tem a finalidade de objetivar os motivos da decisão judicial. Porém, é inevitável que o juiz, mesmo assim, disponha de elevado grau de discricionariedade para apreciar, no caso concreto, a presença, a dimensão e a relevância de cada um dos elementos e circunstâncias descritos no referido parágrafo.
Mesmo assim, não será uma tarefa judicial fácil de ser desempenhada. A própria Lei Antidrogas, admitindo essa dificuldade, criou uma outra modalidade típica situada entre o simples consumo pessoal e o tráfico ilícito de drogas. Trata-se da conduta consistente em oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para consumo conjunto (art.33, § 3º). Há, também, a causa de redução de pena, de um sexto a dois terços, para o “agente primário e de bons antecedentes (§ 4º).
Essas duas formas punitivas bem mais brandas, em comparação com a natureza e a intensidade da penas previstas para o crime de tráfico ilícito de drogas, porém mais severas em relação às sanções não prisionais cominadas ao consumidor de drogas, em determinados casos concretos, poderão representar alternativas penais às duas formas extremadas de controle penal positivado na atual Lei Antidrogas.
3. Consumo Pessoal de Drogas, sem Autorização Legal: Inusitada Espécie de Descriminalização Branca
Em termos de Política Criminal, a Lei de Drogas não atendeu à corrente doutrinária que defendia a pura e simples descriminalização da conduta consistente no porte para uso pessoal de substância entorpecente. Mas, também não manteve a solução da lei anterior, que cominava pena privativa de liberdade para esse tipo de infrator.
Acabou prevalecendo a opção por uma espécie de descriminalização branca. Como a lei não admite o uso da prisão, nem mesmo no caso de reincidência e/ou de não cumprimento das sanções não-detentivas aplicadas pelo juiz, na prática, o usuário acabará excluído do controle penal. Isto não deixa de ser inovador, pois o atual sistema penal ainda se encontra ancorado na prisão como pressuposto nuclear de validade e de eficácia do sistema punitivo vigente.
Na verdade, a Lei 11.343/06 criou uma figura típica inusitada em nosso Direito Penal. A rigor, a conduta de porte para consumo pessoal não pode ser considerada crime ou contravenção, que são as duas espécies de infração admitidas em nosso sistema penal. Nos termos do art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal, “crime é a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”.
É possível argumentar que a Lei Antidrogas é norma posterior e, ao dispor de outro modo, acabou criando uma nova espécie de infração criminal para a qual foram cominadas penas distintas da detenção e da reclusão. Assim, a partir de agora, nosso sistema penal estaria convivendo com duas espécies de crimes, quanto à natureza das penas cominadas. A conduta típica de consumir drogas seria o único crime não punido com pena de detenção ou reclusão, enquanto que todos os demais crimes, previstos no Código Penal ou nas leis especiais, continuariam legalmente classificados pela marca da pena privativa de liberdade.
Argumenta-se, também, que o Capítulo III, da Lei de Drogas, que define o “crime” de consumo pessoal de drogas, refere-se aos crimes e às penas. Portanto, é o próprio texto legal que classifica como crime, de forma expressa, essa nova espécie de infração penal.
No entanto, é preciso observar que o parágrafo 1º, desse mesmo artigo, ao sancionar o semeador ou cultivador de drogas para consumo pessoal reporta-se à aplicação das “mesmas medidas” e não das penas. Isto constitui uma contradição jurídica em relação ao disposto na rubrica do próprio capítulo e deve ser considerada para se estabelecer a correta natureza jurídica desta nova conduta típica.
Além disso, é preciso não esquecer dos princípios que fundamentam a Lei Antidrogas. No tocante ao simples usuário ou consumidor, o artigo 1º é taxativo ao dispor que “esta lei (...) prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas”. Este é um dos princípios que orientam todas as normas integrantes da Lei 11.343/06. E, em seu texto, não há qualquer referência à repressão, pena, nem a crime. E todos sabemos que os princípios, em termos de hierarquia normativa, pairam num plano superior ao das normas.
Diante disso, cremos ser mais razoável o entendimento de que a Lei Antidrogas criou uma nova infração penal, que não se enquadra na classificação legal de crime, nem de contravenção penal. Criou, simplesmente, uma infração penal inominada, punida com novas alternativas penais e isto não contraria a diretiva genérica de classificação das infrações penais, emanada do referido dispositivo da Lei de Introdução ao Código Penal.
No texto da Lei Antidrogas, podemos perceber o compromisso com uma nova proposta de Política Criminal em relação ao consumidor de drogas: prevenção, atenção e reinserção social.
E isto constitui um forte argumento de hermenêutica jurídica em favor da tese de descriminalização da conduta de porte para consumo pessoal de drogas. No mínimo, de uma imprópria descriminalização branca.